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Liberdade e Legado

Quando o Direito vira imposição

Liberdade e Legado

A liberdade é um conceito que pulsa entre o concreto e o abstrato, entre a história e a consciência. Ao escrever sobre suas dimensões objetiva e subjetiva, buscamos mais do que uma definição — buscamos compreender como ela se manifesta, se esconde e se transforma ao longo do tempo. Vivemos em uma era que se autoproclama livre. A liberdade é o mantra das democracias modernas, o slogan das redes sociais, o argumento dos debates públicos.

Esse conceito tão exaltado quanto mal compreendido atravessa séculos como bandeira de luta, promessa de emancipação e, mais recentemente, como produto de consumo. Da guilhotina à hashtag, ela mudou de forma, mas não de função: continua sendo o instrumento pelo qual se mede o que é aceitável, o que é justo, o que é humano. Mas há algo inquietante nesse cenário: a liberdade deixou de ser uma conquista e passou a ser uma exigência. Somos obrigados a ser livres. E essa obrigação, paradoxalmente, tem nos tornado menos livres.

A Revolução Francesa é frequentemente lembrada como o marco fundador da liberdade moderna. O fim do absolutismo, a queda da Bastilha, a Declaração dos Direitos do Homem — tudo isso compõe o imaginário de uma sociedade que finalmente se libertou das amarras da tirania. Mas a história, como sempre, é mais complexa.

Como vimos no artigo anterior, a mesma revolução que proclamou liberdade, igualdade e fraternidade também instaurou o Terror, perseguiu dissidentes e justificou a violência como meio de purificação política. Foi, sem dúvida, um marco na construção da modernidade política. Contudo, como visto no artigo anterior, a tensão entre emancipação e violência revela um paradoxo que atravessa séculos: a liberdade, quando absolutizada ou instrumentalizada, pode se tornar seu próprio oposto.

Rousseau, ao propor que o homem seja “forçado a ser livre”, não estava defendendo tirania, mas apontando para um dilema entre autonomia individual e pertencimento coletivo. Dilema que ainda nos assombra: a liberdade como contrato social exige renúncias. O problema surge quando esse contrato é manipulado por quem confunde vontade geral com vontade de poder — seja um rei, um partido ou um algoritmo.

Historicamente, a liberdade foi um ideal perseguido por séculos. Lutou-se contra tiranias, contra censuras, contra estruturas que oprimiam corpos e mentes. Hoje, o espírito revolucionário sobrevive em slogans e discursos, mas perdeu sua profundidade filosófica. A liberdade virou performance. E a performance, como sabemos, exige plateia, aplauso e roteiro. Temos uma inversão curiosa: não se trata mais de lutar por liberdade, mas de se submeter a ela. A sociedade contemporânea construiu um dogma — quem não se encaixa na narrativa dominante da liberdade é visto como retrógrado, perigoso ou simplesmente ignorante.

Na sociedade atual, a liberdade não é apenas um direito — é um dever. Espera-se que sejamos livres, autênticos, empoderados. O dilema “meu corpo, minhas regras” é um exemplo emblemático. Tornou-se um imperativo moral absoluto, que exclui qualquer nuance, qualquer debate, qualquer reflexão sobre os limites entre o eu e o outro. A liberdade corporal, quando transformada em dogma, deixa de ser escolha e passa a ser obrigação ideológica. Não se pode discordar, ponderar ou questionar — sob pena de ser cancelado, silenciado ou rotulado. Nesse contexto, a liberdade não liberta: ela constrange.

É nesse cenário que se impõe uma reflexão mais profunda sobre os limites da liberdade subjetiva quando desconectada da estrutura objetiva. É importante reconhecer que a filosofia não se limita à exaltação ou condenação: ela interroga, provoca e desestabiliza certezas.

E isso se estende a todas as esferas da vida. Essa liberdade obrigatória se manifesta também nas escolhas cotidianas. Somos livres para escolher nossa identidade, nossa profissão, nossa verdade — desde que essas escolhas estejam dentro dos limites do que é socialmente aprovado. Somos bombardeados por discursos que exaltam a autonomia: escolha sua carreira, seu gênero, sua identidade, sua verdade. A liberdade virou um produto — e como todo produto, tem embalagem, marketing e prazo de validade. A ilusão da escolha é reforçada pelas redes sociais, palco principal da liberdade performática. Ali, somos livres para dizer o que pensamos — desde que o pensamento esteja dentro dos limites do algoritmo. A liberdade de expressão virou liberdade de repetição.

No Brasil contemporâneo, temos liberdades garantidas constitucionalmente — expressão, voto, associação. Mas será que essas liberdades são plenamente vividas? Quando decisões políticas são tomadas em gabinetes fechados, quando o acesso à informação é desigual, quando a participação cidadã se limita ao espetáculo eleitoral — estamos diante de uma liberdade performada, não experienciada. E quando alguém ousa sair da linha, o sistema reage com força: denúncias, bloqueios, exclusões. A liberdade, nesse contexto, é vigiada, monitorada e punida.

A liberdade subjetiva, nesse contexto, pode se tornar uma ilusão confortável. Sentimo-nos livres porque escolhemos, mas não sabemos o que nos é negado. Ao questionarmos os limites da liberdade vivida, propomos que essas conquistas só se realizam plenamente quando acompanhadas de consciência crítica e estrutura transparente. A verdadeira liberdade não está apenas em agir conforme a própria vontade, nem apenas em obedecer a leis justas. Ela floresce quando há espaço para o diálogo, para o dissenso, para a escuta.

Talvez o aspecto mais perigoso dessa nova configuração seja a tirania disfarçada de boas intenções. Em nome da proteção, da inclusão, da segurança, propõem-se medidas que restringem justamente aquilo que se diz defender. Um exemplo claro é o debate sobre a regulação das redes sociais. A proposta parece sensata: combater fake news, proteger usuários, evitar discursos de ódio. Mas quem define o que é verdade? Quem decide o que é ódio? Quem fiscaliza os fiscalizadores? A regulação, quando feita sem transparência e sem limites claros, transforma-se em censura. E a censura, mesmo quando bem-intencionada, é sempre uma ameaça à liberdade.

A história nos ensina que regimes autoritários raramente se apresentam como tal. Eles chegam com promessas de ordem, de justiça, de progresso. E é justamente por isso que são perigosos: porque seduzem, convencem, conquistam. A liberdade, para sobreviver, precisa desconfiar das boas intenções. Precisa resistir à tentação de entregar sua essência em troca de segurança. A Revolução Francesa nos ensinou isso — mas parece que esquecemos.

Estamos, portanto, diante de um paradoxo: quanto mais se fala em liberdade, menos ela é vivida. A liberdade verdadeira não é aquela que nos é imposta, mas aquela que escolhemos com consciência, com responsabilidade, com disposição para o risco. Ser livre é poder dizer “não” — inclusive ao discurso dominante da liberdade.

A liberdade não é uniforme, não é absoluta, não é confortável. Ela exige conflito, exige dúvida, exige coragem. E talvez por isso esteja sendo substituída por uma versão mais palatável: a liberdade domesticada, higienizada, aprovada por comitês e algoritmos. Essa versão não incomoda, não provoca, não transforma. Mas também não liberta.

O que resta, então, é a liberdade interior — aquela que não depende de aprovação externa, que não se curva às tendências, que não se vende em pacotes ideológicos. Essa liberdade é silenciosa, discreta, resistente. Ela não precisa ser exibida, nem defendida com slogans. Ela vive na recusa, na dúvida, na escolha consciente.

E talvez seja essa a liberdade que mais incomoda: a que não se deixa capturar. A que não se transforma em bandeira. A que não se presta à tirania das boas intenções. Porque essa liberdade, quando vivida de forma autêntica, revela o que muitos preferem esconder: que o verdadeiro poder está em não se deixar obrigar — nem mesmo a ser livre.

Se a liberdade performática nos aprisiona em narrativas ideológicas e algoritmos, talvez seja hora de olhar para uma liberdade que transcende o tempo, o poder e a cultura — a liberdade espiritual. Na tradição cristã, a liberdade não é apenas um direito humano, mas um dom divino. “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou” (Gálatas 5, 1) — não uma liberdade que se impõe, mas que se oferece; não uma liberdade que exige, mas que convida.

Essa liberdade não se confunde com autonomia irrestrita, nem com a ilusão da escolha mercadológica. Ela é a liberdade de viver segundo a verdade, mesmo quando essa verdade é incômoda. É a liberdade de servir, de amar, de renunciar. Paradoxalmente, é na entrega que se encontra a libertação. Como dizia Agostinho, “Ama e faz o que quiseres” — porque o amor verdadeiro orienta a vontade para o bem.

A liberdade interior, que este texto evoca, encontra eco profundo na fé: é o espaço onde a consciência se encontra com o eterno, onde o ser humano deixa de ser escravo de si mesmo para se tornar filho. Não se trata de submissão cega, mas de confiança radical. A fé não anula a liberdade — ela a purifica. E é nesse encontro entre liberdade e transcendência que o ser humano pode finalmente dizer “sim” sem medo, e “não” sem culpa.

Em tempos de tiranias disfarçadas de boas intenções, a liberdade espiritual permanece como resistência silenciosa. Ela não precisa de palco, nem de aplausos. Vive na escuta, na oração, na coragem de ser autêntico diante de Deus e do mundo. Porque, no fim, a verdadeira liberdade não é fazer tudo — é saber o que não se deve fazer. E isso, talvez, só se aprende quando se olha para o alto.


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Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 57 edição de Agosto de 2025 – ISSN 2764-3867



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