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JUSTIÇA OU VINGANÇA?

JUSTIÇA OU VINGANÇA?

Estamos nos aproximando do final de 2025 e nosso país segue dividido. O lema adotado pelo governo federal "União e Reconstrução" nunca passou de um lema. A sociedade segue dividida e o ódio tem se espalhado, substituindo a simples oposição de lados divergentes. É como se não tivéssemos mais facções políticas, mas praticamente torcidas rivais que extrapolam os objetivos de seus objetos de paixão — no caso, a política partidária — e invadem a seara do ódio e da destruição mútua das reputações. No Brasil, a racionalidade, a razoabilidade e a justiça parecem ter cedido lugar ao interesse pessoal, à rivalidade e à vingança.

O mais recente exemplo sobre este grave problema nacional se materializa nas manifestações a favor e contrárias à anistia, não só aos presos do 8 de janeiro de 2023, mas também a todos os que foram investigados ou indiciados por supostamente atentarem contra a democracia. Os debates ocorrem nas ruas e nas redes sociais. O observador distraído poderia pensar que a dificuldade de consenso sobre o tema poderia vir de um certo ineditismo desta medida, mas a história nos mostra que a anistia no contexto brasileiro pode ser tudo, menos inédita.

Mas será a anistia uma solução para as crises que enfrentamos? Crise institucional, de identidade coletiva e de justiça? No contexto atual, uma anistia semelhante para os envolvidos nos eventos de 8 de janeiro seria mais que uma questão de justiça, considerando que nem todos os participantes cometeram atos de invasão ou depredação. Muitos são idosos, motivados por convicções políticas; outros são jovens, incluindo crianças, mas todos estavam desarmados. As manifestações prévias nas entradas de quartéis se mantiveram pacíficas e não havia qualquer mobilização no sentido de usar de força ou violência contra o Estado, prédios públicos ou pessoas. A análise do desenrolar dos fatos no 8 de janeiro mostra que há evidências de facilitação à invasão, seja ela proposital ou descuido por parte das forças de segurança. Para além dos manifestantes, existem relatos de infiltrados, o que poderia sugerir elementos externos ao grupo principal, que poderiam ter incitado atos criminosos, disparando o conhecido "efeito manada".

São muitas questões que, em um clima de normalidade jurídica e institucional, levariam naturalmente à anistia, no mínimo para fins de pacificação. Mas a anistia é um expediente conhecido e aplicado ao longo de nossa história? É quase certo que os leitores lembrarão da famosa "anistia ampla, geral e irrestrita" de 1979. Mas temos apenas este precedente?

A anistia tem sido um mecanismo constitucional recorrente na história brasileira, utilizado para restaurar o equilíbrio social e jurídico, após períodos de tensão social, política e até militar. A Lei nº 6.683 de 1979, que concedeu anistia ampla, geral e irrestrita a crimes políticos e conexos entre 1961 e 1979, exemplifica como esta medida pode facilitar transições democráticas, promovendo reconciliação sem comprometer a responsabilização seletiva.

Desde 1822, o Brasil concedeu diversas anistias, muitas delas amplas para resolver conflitos políticos, conforme compilações oficiais da Câmara dos Deputados. Essas medidas não ignoravam a lei, mas buscavam equilíbrio ao perdoar atos motivados por contextos coletivos, preservando a ordem sem perpetuar divisões.

Em 18 de setembro de 1822, D. Pedro I decretou a anistia aos portugueses opositores à Independência do Brasil. Esse ato visava pacificar o país após a declaração de independência, promovendo a reconciliação e tentando evitar conflitos internos que poderiam enfraquecer o novo império. A anistia permitiu que aqueles que haviam se posicionado contra a separação de Portugal retornassem à vida política e social sem punições. Os eventos posteriores que se estenderam até 1824, como os ocorridos na Bahia, foram tratados com o rigor da lei, consolidando a independência, com foco exclusivo nas dissidências.

Nos anos de 1830, período em que estivemos sob as Regências, ocorreram decretos regionais, como o de 11 de outubro de 1833, que concedia anistia em razão das comoções sociais e políticas ocorridas na província do Maranhão. Também o decreto de 4 de novembro de 1833, que concedeu anistia aos oficiais e praças do corpo de artilharia da Marinha pronunciados e presos pelos acontecimentos de outubro de 1831, onde a individualização das participações foi observada, evitando injustiças. Encontramos ainda o decreto de 19 de junho de 1835, que concedeu anistia aos envolvidos em crimes políticos até o fim do ano anterior nas províncias de Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Avançando ao período do segundo reinado, em 1º de março de 1845, foi assinado o Tratado de Ponche Verde, concedendo anistia ampla aos participantes da Revolução Farroupilha, com integração de rebeldes ao Exército, promovendo equilíbrio regional e favorecendo a integração nacional.

Nos primeiros anos do período republicano, em 6 de setembro de 1895, o decreto do presidente Prudente de Morais anistiou participantes da Revolução Federalista e da Armada, de forma ampla para pacificar e consolidar a República.

Em 26 de novembro de 1910, o recém-empossado presidente Hermes da Fonseca sancionou uma lei aprovada emergencialmente pelo Congresso, anistiando os militares participantes da Revolta da Chibata. Após a rendição e devolução dos navios sequestrados, o governo determinou a prisão de todos os participantes anistiados, alegando que um novo plano de insurreição estava em curso.

No início da Era Vargas, em 11 de novembro de 1930, o Decreto nº 19.398 concedeu anistia "a todos os crimes políticos, quaisquer que sejam a sua natureza, os seus autores e os seus cúmplices, os delitos decorrentes desses crimes e os crimes militares, desde que praticados com intenção política, ou a serviço de movimento político". Ficavam anistiados também "os funcionários públicos civis e militares, que foram exonerados, demitidos, reformados ou postos em disponibilidade por motivos ostensiva ou ocultamente políticos".

Seguindo o governo Vargas, o decreto-lei 7.474 de 18 de abril de 1945 concedeu anistia "a todos quantos tenham cometido crimes políticos desde 16 de julho de 1934". Esta anistia era um ato que visava facilitar alianças políticas, no contexto da crise que o governo atravessava.

Em 10 de setembro de 1945, o Decreto-Lei nº 7.943 concedeu anistia aos acusados por crimes de injúrias aos poderes públicos e aos responsáveis por crimes ocorridos por ocasião de manifestações políticas.

Com João Goulart, encontramos o Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, que foi assinado pelo vice-presidente em exercício, Auro Moura Andrade, o que na prática ampliava o alcance do Decreto-Lei 7.474 de 1945.

Até que chegamos finalmente a 28 de agosto de 1979, com a famosa Lei nº 6.683, que concedeu anistia ampla, geral e irrestrita a crimes políticos e conexos de 1961 a 1979. A Lei implícita e tacitamente reconhecia os excessos praticados por todas as partes envolvidas durante aquele período e, diante da impossibilidade de julgar à exaustão e individualizar todos os crimes, sem paralisar institucionalmente o país, anistiava a todos.

A Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, reforçou o quadro jurídico de anistias.

Pedimos perdão aos nossos leitores se todo esse rol de exemplos de anistias históricas pode parecer extenso e cansativo, mas esses precedentes demonstram que anistias amplas servem à justiça ao diferenciar intenções coletivas de atos isolados, evitando punições que exacerbem polarizações, dando oportunidade ao país como um todo a prosseguir na construção de sua história.

Os eventos de 8 de janeiro de 2023 envolvem um cenário político e social muito mais complexo e abrangente e que demandaria uma análise muito mais longa, equilibrada, individualizada, e não apenas um resumo maniqueísta que limita todo o contexto e seus participantes a uma série de eventos que acabam por receber o título genérico e abstrato de "atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito". Nem todos os participantes invadiram ou depredaram os prédios dos Três Poderes; muitos permaneceram na praça, exercendo direitos constitucionais de manifestação, sem envolvimento direto em vandalismo. Relatórios indicam que uma minoria cometeu excessos, enquanto a maioria era composta por cidadãos comuns, incluindo idosos que participaram motivados por convicções políticas e sentimentos de defesa patriótica, sem histórico de violência. Punir esses grupos de forma indiscriminada violaria princípios de proporcionalidade jurídica, gerando ainda mais divisão e insegurança.

Ademais, a escalada dos eventos sugere falhas externas: indícios de facilitação pelas forças de segurança, como omissões em barreiras e alertas ignorados pela Força Nacional, criaram condições para o descontrole. Há relatos de infiltrados — elementos externos que teriam incitado vandalismo para desacreditar o movimento — o que reforça a necessidade de distinções justas, evitando condenações baseadas em narrativas simplificadas.

Esses elementos demandam equilíbrio: uma anistia ampla como a de 1979 permitiria ao país retomar sua caminhada institucional no sentido do real atendimento dos objetivos presentes no art. 5º da Constituição Federal.

Finalmente, gostaríamos de trazer à lembrança a pena imposta ao alferes Joaquim José da Silva Xavier, o conhecido Tiradentes. Sua morte se deu por enforcamento em praça pública; seu corpo foi esquartejado; sua cabeça salgada e exposta no alto de um poste em Vila Rica (atual Ouro Preto); os demais membros exibidos ao longo do caminho desde a corte (Rio de Janeiro) até Vila Rica; sua casa demolida e o solo salgado para que nada mais ali crescesse. O conjunto cruel e sanguinolento desta condenação servia a um propósito bastante específico: que qualquer pessoa que seguisse os mesmos ideais, soubesse que teria o mesmo fim. Que servisse de exemplo!

Os contrários à anistia aos participantes do 8 de janeiro e a todos os demais incluídos nos inquéritos, que se reúnem em torno da suposta defesa da democracia, querem justiça ou vingança? Querem a pacificação ou a criação de milhares de novos alferes, exibidos em praça pública como exemplos atuais dos mesmos objetivos do passado? A resposta parece ser bem resumida na máxima: não ousem estar no caminho dos detentores da democracia.



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Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. IV N.º 58 edição de Setembro de 2025 – ISSN 2764-3867


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