A música na oração e a poesia na teologia
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A música na oração e a poesia na teologia



Quem canta reza duas vezes, diz um ditado popular. O Rei David salmodiava e louvava Javé tocando harpa e declamando verdadeiros poemas, ora de angústia, ora de alegria, ora de clamor, ora de agradecimento.

Quero mostrar a você uma música que reúne melodia adequada para meditar e orar e uma composição cuja letra apresenta traços bíblicos teológicos, com uma elegância e sutileza sem tamanho, pois fala de Jesus Cristo, sem citar seu nome, fala de ressurreição, sem dizê-lo expressamente, relembra os lugares de oração de Jesus, sem perder a poesia. Fala até do juízo final. Estou falando da música O Homem, de Erasmo Carlos e Roberto Carlos. Estariam eles salmodiando para Deus?

Reza a canção:

Um certo dia um homem esteve aqui/Tinha o olhar mais belo que já existiu/Tinha no cantar uma oração/E no falar a mais linda Canção que já se ouviu/Sua voz falava só de amor/Todo gesto seu era de amor/E paz, Ele trazia no coração

Nessas primeiras estrofes eles fazem catequese a partir da visão que um poeta e cancioneiro tem das passagens dos Evangelhos. Nessas estrofes, com sutileza e poesia falam de uma qualidade maravilhosa de Jesus: a compaixão, que consiste em olhar o outro como a si mesmo, colocando-se no lugar do outro para sentir como deve sentir o outro. Isso eles dizem numa frase: “Tinha o olhar mais belo que já existiu”. Era o olhar da compaixão e misericórdia.

O “belo” aqui não se refere apenas à estética, mas também à ética; é um “belo” no sentido de expressar compromisso e revelar em atitudes a Verdade, o rosto do Pai. Vejam como um poeta alcança e transmite uma mensagem bíblica e teológica sem citar um único versículo das Escrituras.

Em seguida, fazem um trocadilho poético invejável: “Tinha no cantar uma oração E no falar a mais linda canção”. A liberdade poética permite isso e mais ainda, imaginar que Jesus cantava, e que seu canto era oração. Talvez, de fato, Jesus cantasse os Salmos, que eram verdadeiramente orações. Mas, em seguida, transformam a fala, os discursos de Jesus na“mais linda canção que já se ouviu”. A canção, quando boa, atrai, concentra, permite fazermos associações de tempo, lugar e pessoas, em futuras recordações, chegando, às vezes, a ficar na nossa memória o dia inteiro. Assim descrevem esses poetas, os ditos e as falas de Jesus de Nazaré: a fala de Jesus era a mais linda canção que já se ouviu.

Conseguem expressar na simplicidade, mas com profundeza teológica, aquilo que Jesus exigiu dos discípulos e que condenava nos fariseus: exigia coerência entre o falar e o agire condenava a hipocrisia. E dizem isso assim: Sua voz falava só de amor/ Todo gesto seu era de amor /E paz, Ele trazia no coração”. Jesus falava de amor e amava as pessoas do jeito falava do amor: “Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos (...) Pois, se amardes [apenas] aos que vos amam, que recompensa tereis? não fazem os publicanos também o mesmo?”(Mt 5,44-46). E o evangelista João confirma esse amor incondicional de Jesus: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.” (Jo 13,1) e foi no fim que pregado na cruz injustamente, Ele rezou: "Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo” (Lc 23,34). De fato, como canta Roberto Carlos, “todo gesto seu era de amor”.

Mas termina a estrofe: E paz, Ele trazia no coração”. A Paz que Jesus anunciou dizendo “Eu vos dou a paz; a minha paz vos dou. Não a dou como o mundo a dá” (Jo 14,27 ou em Mt 11,29): “Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas”. Essa mansidão própria de quem traz a paz no coração, Erasmo e Roberto perceberam e cantaram em seus versos.

Ele pelos campos caminhou
Subiu as montanhas e falou do amor maior
Fez a luz brilhar na escuridão
O sol nascer em cada coração que compreendeu.

Campos e montanhas. Jesus caminhou pelos campos, pelo deserto, pelas montanhas. Por isso seus seguidores eram chamados de “os do Caminho” (At, 9,2) e só mais tarde em Antioquia foram chamados de cristãos (AT 11,16).

Nos campos, como em Lc 6,1 e principalmente nas Montanhas (Mt 4,8; Mt 5; Mt 17) dentre tantos exemplos, Jesus costumava ir e levar seus discípulos para momentos de oração e pregação. A última tentação aconteceu numa montanha; as bem-aventuranças foram pronunciadas numa montanha; numa montanha foram multiplicados os pães, e, no fim do Evangelho, quando os discípulos encontram o Ressuscitado e são enviados para o mundo inteiro, encontram-se na montanha, Monte Tabor. Tudo isso foi percebido pelos autores desta canção.

Fez a luz brilhar na escuridão, O sol nascer em cada coração que compreendeu.”

É assim o final dessa estrofe. Isto é uma leitura de Jo 4,5: “Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens.O logos se fez carne, era vida, vida plena e eterna. Só Ele era a verdadeira luz que poderia nos retirar das trevas do pecado e do erro. O sol é o Cristo, que nasce dentro de cada um, que aquece nossa alma e ilumina nossos passos. Uma frase numa música sendo capaz de fazer catequese cristã.

Diz a estrofe que esse Homem fez o sol nascer em cada coração que compreendeu. Compreendeu o quê? Responde a estrofe seguinte:

Que além da vida que se tem
Existe uma outra vida além e assim
O renascer, morrer não é o fim”.

Poetas falando sobre a vida depois da morte, falando da ressurreição. “Morrer não é o fim”, diz a letra da música. “Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá”; “Não fiquem admirados com isto, pois está chegando a hora em que todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, e os que fizeram o mal ressuscitarão para ser condenados”. São palavras de Jesus narradas no evangelho segundo são João.

Morrer pode ser o começo de uma vida eterna na sombra do amor de Deus, na presença da Trindade, de Nossa Senhora e de todos os santos que estão em comunhão entre si e conosco. Ou o começo de uma morte eterna, para aqueles que ressuscitarão para o julgamento final, e poderão ficar eternamente afastados do amor de Deus, no inferno.

A frase da estrofe da música, morrer não é o fim, é um alerta de esperança na ressurreição, mas também de admoestação para o perigo do inferno, como a própria música explicará em linguagem poética mais adiante.

Tudo que aqui Ele deixou/
Não passou e vai sempre existir/
Flores nos lugares que pisou/
E o caminho certo pra seguir.

As duas primeiras frases podem ser lidas biblicamente da seguinte maneira: “Os céus e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão” (Mt 24,35) . Ou nas palavras do profeta Isaías:“Assim será a Palavra que sair da minha boca, não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei”(Isaías 55,11).

A vida encarnada é passageira. Tudo passará e terminará. Somente as Palavras, os ensinamentos e promessas de Jesus serão eternas. Por isso, “Tudo que aqui Ele deixou/Não passou e vai sempre existir/, diz a música com sabedoria.

Mas um outro elemento teológico é apresentado na música: o dever de gratidão e de honrar a Deus Trinitário. É nosso dever darmos graças para nossa salvação, em todo tempo e lugar, afirma o Prefácio das Orações Eucarísticas, na liturgia da santa Missa. Isso é reconhecido pelos cancioneiros quando afirmam: Flores nos lugares que pisou, eo caminho certo pra seguir”.

Os lugares por onde Jesus passou se tornaram lugares santos, de tal modo que as primeiras liturgias e ritos da Igreja levaram esse fato em consideração e respeito, como consta da Liturgia de São Tiago: “Oferecemos-te ó Senhor, por teus santos lugares, que glorificaste com aparições divinas de teu Cristo e pela vinda do teu Espírito Santo, especialmente a santa e gloriosa Sião, mãe de todas as Igrejas” (Sião, na linguagem cristã originária, referia-se sempre à Igreja local de Jerusalém).

Daí um aspecto teológico, litúrgico e eclesial presente numa frase da música de Erasmo e Roberto Carlos, o dever de louvar e agradecer, simbolizado na frase “flores nos lugares que pisou”.

Depois eles cantam:

Eu sei que Ele um dia vai voltar
E nos mesmos campos procurar o que plantou;
E colher o que de bom nasceu,
Chorar pela semente que morreu sem florescer”.

Nessa estrofe encontramos uma riqueza teológica.

Erasmo e Roberto Carlos declaram acreditar na parusia, na segunda e gloriosa vinda de Jesus. Eles começam a música afirmando que “Um certo dia um homem esteve aqui”. E nas estrofes finais eles cantam: “Eu sei que Ele um dia vai voltar e nos mesmos campos procurar o que plantou”. Estão reconhecendo a segunda vinda de Jesus e mais, ainda, afirmando que haverá um juízo, um julgamento final (procurar o que plantou!).

De forma poética ele nos faz lembrar a parábola do Juízo Final em Mt 25,31-46: “Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei como herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer, eu estava com sede e me destes de beber, eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar’”.

Vejam que maravilha, numa estrofe de poucas palavras eles recordam 15 versículos do evangelho de Jesus e afirmam a convicção e crença no retorno de Jesus (sempre sem citar qualquer nome): Eu sei que Ele um dia vai voltar”.

E quando voltar, diz a música, e nos mesmos campos procurar o que plantou”. Vai procurar os “frutos que plantou”, e como na parábola do joio e do trigo – Mt 13,24-30 – e na parábola do Juízo Final, vai “colher os bons frutos” e queimar os frutos ruins, separar as ovelhas dos cabritos, num juízo feito a partir da avaliação de nossas obras de fé, pois quem tem fé tem obras para mostrar. Quem não tem obras para apresentar, vai para a esquerda de Deus Pai, ao lado dos “cabritos”, ao caminho do inferno.

As sementes que não frutificaram (Mc 4-1-20) serão arrancadas, com muita dor, pois Jesus não tem nenhum prazer em ver um pecador condenado, não arrependido. Por isso, com razão na letra da música, se afirma que ele vai Chorar pela semente que morreu sem florescer”, porque a vontade de Jesus é a mesma do Pai: que todos sejamos santos, como ele O é. O projeto de Deus é a salvação para todos, e cada vez que perde um de seus filhos, o céu inteiro chora.

Por derradeiro, dizem os autores dessa maravilhosa canção:

Mas ainda há tempo de plantar
Fazer dentro de si a flor do bem crescer
Pra Lhe entregar quando Ele aqui chegar

Enquanto há vida, a chance de arrependimento e de mudança (metanoia) de comportamento. É sempre tempo de conversão. A conversão nos leva ao caminho da misericórdia e do perdão. Do contrário, sairemos do poder da graça e nos submeteremos ao julgamento de justiça.

Ainda dá tempo de plantar a semente do bem, canta a melodia. Podemos mudar interiormente, fazendo crescer no nosso coração “a flor do bem”, e contribuir para o Reino de Deus ainda na terra (do agora para o ainda não escatológico).

Ainda dá tempo de seguir o caminho das flores, seguindo os passos de Jesus:“Flores nos lugares que pisou, e o caminho certo pra seguir”.

Não entenda que o caminho será um caminho exclusivo de flores. Espinhos, pedras e cruz teremos pelo caminho. O “caminho das flores” significa os ensinamentos de Jesus Cristo que devemos seguir. Flores como metáfora das Palavras deixadas por Cristo. Por isso, caminho certo a seguir.

Reflita isso nessa Quaresma. Ainda dá tempo de plantar a flor do bem!

Que Deus tenha acolhido Erasmo e abençoe a vida de Roberto, para uns, ridicularizado, e para outros, eterno Rei da música brasileira.





Artigo publicado na Revista Conhecimento & Cidadania Vol. II N.º 28

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